Tragédia de Mariana deixa danos à saúde da população: câncer e depressão aumentam anos após o desastre
Data: 08/07/2024 - Autor: Revida Mariana
À espera de reparação, atingida conta rotina permeada por perdas de parentes, ansiedade e depressão; pesquisas indicam aumento de incidência de transtornos mentais, câncer e outros males
“Depressão eu nem vou começar a falar, porque deu demais. Tem gente que até hoje não sai de casa”.
As palavras são de Edith Aparecida de Moura, mulher negra de 59 anos, que viu sua vida mudar em novembro de 2015. Semanas depois de perder o neto de seis anos para um câncer no cérebro, ela conversa com Revida Mariana e retrata o que vê ao seu redor hoje: a tragédia de Mariana deixou danos à saúde da população do município de Naque, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais.
O município de cerca de 7 mil habitantes está entre os atingidos no desastre e ainda amarga, nove anos depois, as duras consequências que a lama deixou sobre a saúde da população. Pesquisas indicam que houve aumento de incidência de transtornos mentais, câncer e outros males nas regiões afetadas.
Hoje se vive menos e pior
Quase nove anos após o rompimento da barragem de Fundão, dona Edith conta que, além do neto, perdeu outros dois parentes recentemente: um teve câncer na garganta; outra, um ataque cardíaco na porta de casa. Dois anos atrás, também viu uma de suas filhas tentar suicídio.
Todos são moradores de uma região em que cada indivíduo perdeu, em média, 2,39 anos de vida após o desastre – os dados são de uma pesquisa realizada pelo Projeto Doce, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
O estudo, que utilizou dados do Ministério da Saúde, ainda aponta outros danos deixados pela tragédia na saúde da população: aumento nos índices de câncer e depressão entre os moradores de cidades atingidas. Dona Edith já sabia disso.
“[Depressão] É o que mais tem. Minha filha Aline mesmo teve um transtorno […]; a gente passou o maior aperto. Ela não queria sair de casa; foi no médico do posto, que passou antidepressivo. Ela estava tomando direitinho. Depois, o grau subiu mais, e ela tentou suicídio. […] Quase morreu, em 2022. Ela tem seis meninos”, conta.
Os números corroboram a história de vida de dona Edith. Três anos após o desastre, uma pesquisa constatou que a prevalência de depressão em municípios afetados pelo rompimento da barragem de Fundão era cinco vezes maior que a média da população brasileira. O estudo foi realizado pelo Núcleo de Pesquisa em Vulnerabilidade e Saúde da UFMG (NAVeS) e a Cáritas Regional Minas Gerais.
“Está repercutindo até hoje. Eu sinto uma tristeza danada… Porque, antes, você tinha o seu local de trabalho certo. Hoje você já não tem. Tem dia em que você fica meio aérea, sabe?” – comenta Edith, que viu a lama levar embora seu emprego como agricultora no dia em que a barragem rompeu.
Hoje ela sofre de insônia e ansiedade, cujo índice de prevalência na região é três vezes maior que a média do país. E relata que dois de seus netos adolescentes foram recentemente diagnosticados com TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) – dados da FGV indicam que houve aumento de incidência de transtornos mentais, danos deixados após a tragédia de Mariana.
Água suja e coceira na pele
“O que cresceu demais no Naque foi câncer de pele; coceira, por causa da água. A nossa água, até hoje, não é tratada para consumo. E a gente não teve ajuda de poder nenhum, do prefeito, do estado, nada, com relação à água”.
Hoje, Dona Edith não confia na água que cai de sua torneira. Ela conta que as impurezas se acumulam no fundo do tanque e mostra preocupação com o serviço de tratamento.
“Quando a água falta e volta, eles colocam algum produto, que ela chega esbranquiçada na torneira. A gente não sabe a quantidade de produto que é colocada nessa água para consumo. A gente já falou, já correu atrás, mas ninguém fez nada até hoje”.
A preocupação de dona Edith é justa: quando a barragem de Fundão se rompeu, mais de 44 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração foram liberados no meio ambiente.
A área foi alvo de um monitoramento emergencial após a tragédia, quando foram encontrados metais em concentração superior ao preconizado pela legislação vigente na época. O material incluía arsênio, cádmio, chumbo, cobre dissolvido, cromo, mercúrio e níquel, que, segundo a FGV, podem, entre outros prejuízos, deteriorar a qualidade da água de mananciais.
Já o Departamento de Análises Clínicas, Toxicológicas e Bromatológicas da Universidade de São Paulo (DACTB/USP) constatou a presença de metais pesados nos 300 indivíduos que participaram de uma pesquisa relacionada à tragédia de Mariana. Destes, 298 tinham aumento de arsênio, que pode causar desde lesões na pele a alguns tipos de câncer – além de doenças cardiovasculares, desordens neurológicas e gastrointestinais, entre outras.
“A saúde de todo mundo ficou muito abalada. […] Tem muito problema de pele, por causa da água. Tem filho aqui em casa que toma banho e tem coceira no corpo. Coceira, que coça até sair sangue da pele. E tem muitas outras pessoas com casos de pele. O câncer aqui no Naque aumentou muito. Muita gente que já morreu”, conta Edith.
“Nosso direito foi vendido”
“O que está adoecendo o povo demais é essa espera”, relata Edith, que ainda aguarda um desfecho que seja favorável aos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão. Entre idas e vindas do processo e novos sistemas impostos pela Fundação Renova, Edith lembra que “Ansiedade também mata”.
Sem saber como pagar as contas no fim do mês, ela acompanha com apreensão as movimentações jurídicas do caso no Brasil e fora dele. Hoje Edith vive de doações que recebe da comunidade e anseia por uma reparação justa pelo maior desastre ambiental do país, que matou 19 e atingiu mais de um milhão de pessoas.
Entre conversas com advogados que ela não compreende, ela conta que precisou aderir a programas e plataformas da Fundação Renova sem ter recebido explicações claras sobre seus direitos, “porque as coisas de casa estavam acabando, as contas chegam todo mês”.
E sentencia: “Nosso direito foi vendido”.
“Os problemas não terminam. Só aumentam. Eles [a Justiça] soltam uma decisão de 35, 45 páginas… E tem muita gente que é leigo, que não sabe nem assinar o nome. […] É tudo lodo. Está todo mundo apreensivo, ansioso. […] O tempo passa, a gente não entende. Por que está demorando tanto? […] Falta clareza. Verdade” – ela avalia.
Enquanto aguarda (e luta) por reparação digna, dona Edith se perde entre as memórias da época em que ia trabalhar às 5h da manhã: “Plantava mandioca, abobrinha, maracujá, essas coisas… E verduras e hortaliças”.
Até então, ela ainda tinha como opção a pesca, que foi proibida após o rompimento da barragem. “Hoje tudo a gente tem que comprar, se virar, se quiser comer, porque não tem mais a carne de peixe. Os peixes estão todos com tumor quando alguém pesca”, diz.
Aquele 5 de novembro mudou tudo. Ou, como diz dona Edith, “acabou tudo”.